segunda-feira, 14 de julho de 2014

PEDRO ALVES CABRAL


Pedro Alves Cabral







 Não um Pedro qualquer
       



      "Os que não conhecem suas raízes formam uma  multidão anônima e sem rosto. 
                                     Correm pelo mundo sem saber de onde vieram  e para onde vão",
                   Autor desconhecido



    Horácio, na Roma Antiga, dois mil anos atrás, profetizou – Littera Scripta Manet – a palavra escrita permanece.
 Segundo a literatura, migração humana compreende qualquer deslocamento, temporário ou definitivo, de indivíduos ou grupos no espaço geográfico, à procura de novos locais para se viver. Locais que lhe proporcionem trabalho, liberdade política ou religiosa, clima mais propício ou melhores condições de vida.
      Aprendemos nos livros escolares que o homem que vive do que a natureza lhe oferece, deixa de ter condições de subsistência quando a caça, a pesca ou o solo se esgotam.
     “... Muitas vezes, esse homem emigra de uma região onde as condições de vida são desfavoráveis, por causa de fatores como desemprego, pobreza, salários baixos, escassez de terras cultiváveis e superpopulação. É atraído para regiões promissoras e abandona sua terra natal.
     As formas mais comuns de migrações nacionais é o êxodo rural, afluxo de populações do campo para as cidades, fenômeno conhecido como urbanização. A concentração das indústrias nas áreas urbanas atrai continuamente contingentes populacionais em busca de melhores condições de trabalho.
    O processo de migração abala frequentemente as instituições, originando novos grupos...”.      
    Essas definições sobre migração foram extraídas da Enciclopédia Conhecer II, editado pela Editora Abril e bem exprime a situação que será retratada nessa trilogia.    
      Pedro Alves Cabral trouxe a família para Mossoró, migrante que era, do Sítio Riacho do Meio, à beira do açude 25 de Março, na zona rural de Pau dos Ferros, localizado na região semi-árida do Nordeste. Pau dos Ferros é terra dos Fernandes, oriundos de Portugal.
     O Açude 25 de Março foi construído para servir de apoio e amenizar o registro de secas naquela região.
     A família Fernandes está espalhada em todo país e no exterior.     
  Pedro Alves Cabral nasceu no dia 29 de junho de 1879, na Fazenda João Gomes, à época, pertencente ao município de Pau dos Ferros. Hoje, a casa grande da Fazenda João Gomes, que foi construída no século XIX, pertence a zona rural do município de Marcelino Vieira, distante dez quilômetros da cidade. Pesquisando sobre a fazenda na internet, encontramos no blog de Jota Maria que a casa grande: “... É um imóvel que se destaca por sua grandeza e pela sua história. O casarão da antiga Fazenda João Gomes e atual Fazenda João Batista, construída em 1856, pelo coronel Epifânio José Fernandes de Queiroz, natural de Pau dos Ferros, que viveu entre 1824 e 1884, era filho de Antônio Fernandes da Silveira e de Joana Gomes do Amorim. Edificada à base de argila, com tijolos de sete quilos, cal e madeira, sem nenhum grama de ferro. Com uma altura de 52 palmos, equivalente a 11,44 metros de altura; 110 palmos de comprimento, ou seja, 24,2 metros; e 75 palmos de largura, equivalente a 16,5 metros. Com 12 repartimentos, sendo seis quartos, uma grande sala de visita, dois corredores, uma imensa cozinha, um sótão e uma capela, onde o padre Bernardinho José de Queiroz e Sá, que viveu entre 1829 e 1884, irmão do Coronel Epifânio, celebrava suas missas. Esse casarão foi erguido com trabalhos de 70 escravos. Na época existia uma senzala, ainda hoje se encontra um carretel – guilhotinha - que servia para enfocar os escravos quando desobedeciam ao seu dono ou senhor”. 
               Sabe-se que a casa grande da Fazenda João Gomes conserva os traços da época de sua construção, com paredes de larga extensão, sem nenhuma rachadura.
            Pedro veio ao mundo, oito anos após a Lei do Ventre Livre, assinada em de 28 de setembro de 1871, que tornava livres, os filhos de escravos que nascessem a partir de sua promulgação. Quatro anos antes, Mossoró libertou seus escravos - em 30 de setembro de 1883, nove anos antes da Lei Áurea, assinada pela Princesa Izabel - em 13 de maio de 1888 - que libertou os escravos do Brasil.   
            O motivo da migração de Pedro Cabral e família, da mudança de lugar, sair de Pau dos Ferros, cidade pequena no alto oeste do Rio Grande do Norte, em dezembro de 1934 foi a seca, além da oportunidade de oferecer a continuidade de estudos das filhas ainda solteiras. 









  A seca



                             "Procure ser um homem de valor                     em vez de procurar ser um homem de                                        sucesso",  Albert Einstein                                                                 


     Nem mesmo as crianças escapam ao mutirão pela sobrevivência no sertão nordestino. Caminham sob um sol escaldante junto aos mais velhos, rumo a um açude, pois precisam encontrar água.
    Quando o inverno não vem, a cena se repete ano a ano, inclusive no inicio do século XXI, onde a primeira seca afetou mais de dez milhões de brasileiros em centenas de municípios do Nordeste.  Em oito estados, mais de trezentas cidades decretaram estado de calamidade pública e receberam milhares de cestas básicas distribuídas pelos governos locais.
      Pedro Alves Cabral nasceu na maior seca do século XIX e viveu pouco mais de oito décadas. A seca mudou o destino e o rumo de sua vida, obrigando-o a migrar para o mesmo estado, o Rio Grande do Norte, em busca de melhores dias para uma família bastante numerosa.
      A mudança para a cidade grande, no caso, Mossoró, não só os livrou da seca, como proporcionou estudo e ascensão educacional, profissional e social aos seus descentes.
      Dos filhos homens, somente dois seguiram na agricultura como o pai, José e Odílio. José não migrou para Mossoró, gostava da vida de aboiador de gado. Dois outros tornaram-se funcionários de uma das maiores empresas da região oeste do estado, a Alfredo Fernandes & Cia, Chico Cabral e Cirilo, que passaram a gozar de prestígio na cidade grande, pólo da região. Eliseu ingressou no quadro de funcionários do Banco do Brasil, tendo se aposentado, em Recife, para onde se transferiu na década de cinquenta.
      As filhas de Pedro Alves Cabral tiveram acesso a escola formal, quando outras famílias as preparavam para casar e cuidar da casa, de marido e filhos. Algumas estudaram pouco e casaram cedo: Maria, Júlia e Regina. Três fizeram a diferença na década de 1940, com diploma da Escola Normal de Mossoró, partiram para o mercado de trabalho e atingiram o ápice da profissão: Adelzira, Guiomar e Inalda, as duas últimas, cursaram a universidade. Todas três exerceram com sucesso o cargo de direção em escolas. Uma delas, Inalda, foi mais longe,  assumiu a diretoria de educação do município de Mossoró, nos anos 1960, na gestão do prefeito Raimundo Soares de Sousa e, na década seguinte, fundou uma escola particular no centro da cidade, o Educandário Nossa Senhora Aparecida, extinta no final dos anos 1990.
       Durante dois governos estaduais, Inalda exerceu a chefia do NURE - Núcleo Regional de Ensino - hoje DIRED - Diretoria Regional de Ensino e Desporto - sendo à época, responsável pela educação em vinte municípios da zona oeste do estado.
       Os descendentes de Pedro Alves Cabral estão espalhados em diversos estados. Não precisam tirar o sustento da terra, como o patriarca, Pedro Cabral ou Pedro Muribeca, para os conhecidos. As duas filhas sobreviventes, ainda o chamam carinhosamente de Meu Pai, como o tratavam desde criança. Para a maioria dos netos, Padim ou Padrinho Pedro. Alguns, muito raramente, o chamam de Vovô.
    Os netos, bisnetos e tetranetos de Pedro Cabral exercem diversas profissões: médicos, advogados, jornalistas, professores, engenheiros, bancários, arquitetos, psicólogos, administradores de empresas, empresários e tem até um juiz federal. Um neto foi goleiro do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro.
   E, quem diria, Pedro Cabral teve neto metalúrgico, neta jornalista e escritora, três bisnetos médicos, bisneta professora; bisneto arquiteto e bisneto juiz, na maior cidade do país, São Paulo.   
       

             















                     O MENINO DA PORTEIRA



                                            “O possível a gente resolve agora.  
                                           O impossível, daqui a pouquinho”.
                                                                               Joca Bruno



               Uma seca castigara o Rio Grande do Norte, de 1877 a 1879, causando crises de toda ordem, na agricultura, comércio e na saúde pública, causando enormes prejuízos, com danos materiais e de vidas humanas. Se não bastasse a fome, a situação agravou-se com as angústias das doenças epidêmicas e contagiosas, aumentando o sofrimento da população sertaneja. Como consequeência, muita gente migrou para a Amazônia, as doenças e a fome causaram inúmeros óbitos. E Pedro Cabral nasceu em meio a essa grande seca.     
               Em março de 1879, nascia na Alemanha, Albert Einstein,  o mais influente físico depois de Isaac Newton. Portanto, Einstein é contemporâneo de Pedro Cabral e viveu dez anos a menos do que Pedro.
               Em 1879, ano em que Pedro nasceu alguém que nasceu a poucos quilômetros de Pau dos Ferros, mais precisamente na zona rural de Patu, que ganhara fama pelo Nordeste, morria aos 35 anos de idade, no Riacho dos Porcos, município de Brejo do Cruz, Paraíba: Jesuíno Alves de Melo Calado, o Jesuíno Brilhante, que o escritor Raimundo Nonato o descreve como “... cangaceiro, boiadeiro romântico, espécie matuto de Robin Hood, adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos velhos oprimidos, das moças ultrajadas, das crianças agredidas”.
             Jesuíno Brilhante, que além de vasta literatura ao seu respeito, já teve a vida retratada no cinema, foi um cangaceiro que antecedeu Lampião, o mais famoso de todos. Porém, Jesuíno nunca matou para roubar e seus seguidores teriam que seguir um código de honra: “Quem entra para este grupo, não toca no alheio e aprende a respeitar a casa das famílias honestas”, ordenava.
               Portanto, Pedro Cabral nasceu num tempo em que até bandido já tinha código de honra. Somente em 1880 reapareceu o inverno. Uma nova seca viria em 1889, 1898 e 1900. Devastadoras secas ocorreriam no século XX, sobreturo em 1904, 1915, 1919, 1932, 1942 e mais anos ulteriores. Houve copioso inverno entre 1920 a 1922.
              Pedro falava quase nada sobre o seu passado. Isso porque não nasceu numa família constituída de pai e mãe. Nem lhe foi permitido saber quem foi seu genitor. Já com idade avançada, às vezes, soltava-se um pouco com a caçula Inalda, a quem era apegado. Adelzira comentava que seu pai conversava mais com Inalda, porque esta tinha curiosidade em saber da vida dele.
           Antônia perguntava, eventualmente, o que Pedro cochichava tanto com Inalda. “Meu Pai conversava muito com Inalda, mas comigo, não!”, explica Odílio. “Nem Meu Pai, nem Minha Mãe gostavam de falar da vida deles. Acredito que é porque foram criados pelos outros. Meu Pai dizia que sua mãe faleceu jovem, durante o parto do irmão mais novo e que era mulher linda, morena, do cabelo grande, de pernas bonitas”, conta Inalda. Pedro contava também a Inalda, que ela se parecia com a mãe dele. Quando ficou órfão da mãe, Pedro tinha algo em torno dos nove anos de idade.
             O saudoso jornalista e escritor Calazans Fernandes, natural de Marcelino Vieira, radicado na capital paulista, tornou público o que a família Fernandes sempre soube: que Pedro Alves Cabral é descendente dos Fernandes. Em seu livro Serra das Almas - O Guerreiro do Yaco sobre a biografia de Childerico José Fernandes de Queiroz Maia, lançado em 2002, o autor insinua que Pedro Alves Cabral era fruto de uma relação de Childerico com uma moradora da fazenda, talvez descendente de escravos. Assim sendo, confirma o que ele dizia quanto à maternidade, que uma escrava o gerou na casa do seu senhor. Daí, a sua pele morena. Childerico Fernandes, ou Childerico II, foi um dos líderes da Revolução do Acre e teria se relacionado com uma escrava adolescente, algo em comum naquele tempo. 
              Calazans escreveu sua obra, baseado em escritos deixados por seu pai - José Calazans Fernandes, o Zé Rufino, que guardava num baú, as histórias que recolheu durante toda uma vida, inclusive, segundo descreve, “As fabulosas referências à saga de Childerico II ano Acre”.
              Childerico retornara ao Rio Grande do Norte em 1938, e Calazans descreve que “o viu chegar com pompas e regalias montado num cavalo pintado”. 
              A respeito de Pedro Cabral, o livro de Calazans registra à página 184: “...menino saudável e taludo, nascido e criado nos oitões da casa grande de João Gomes, batizado por Pedro Alves Cabral, que constituiu bem nutrida família e a fez prosperar na abundância. As mulheres como professoras, os homens como classificadores de algodão, integrados com os Fernandes da Tromba do Elefante nos negócios de exportadores de matérias primas regionais, sem que ninguém jamais perguntasse quem eram Pedro Muribeca e toda sua prole...”         
            Segundo Calazans Fernandes em seu livro: “Childerico José Fernandes de Queiroz Maia nasceu em Pau dos Ferros, órfão de mãe, criado por um irmão, entendeu bastar-se a si mesmo e viajou, num cavalo velho, para o Quixadá, no Ceará, onde vendeu o cavalo. O saldo da venda serviu para levá-lo ao Pará. Tinha quinze anos. Começava a campanha. Em Belém, aceitou a luta, trabalhando nas ruas, com picareta e pá, a jornal de níqueis. Depois teve um acesso. Condutor de bonde, de bonde puxados a burros...”. Mais adiante, Calazans resume: “Trocou o Rio Grande do Norte pelo Acre, em 1890, onde se tornou proprietário dos seringais Oriente e Espalha, no Rio Iaco. Ele lutou contra as tropas bolivianas no Exército da Revolução Acreana, durante a conquista do Acre, sob o comando do coronel José Plácido de Castro. O irmão mais novo de Childerico, João Câncio Fernandes, foi governador do Acre, segundo conta Calazans Fernandes no seu livro
Serra das Almas – O Guerreiro do Yaco. Childerico faleceu no Rio de Janeiro em 1939. Dentre outros, Childerico era irmão de Francisca Fernandes, que vem a ser avó de Aldeisa Fernandes, mãe do historiador Francisco Honório de Medeiros Filho. 
             Há quem discorde dessa origem de Pedro Cabral e corre outra versão na família Fernandes, que Pedro Alves Cabral seria filho de Adolfo Fernandes, irmão de Childerico e pai de Alfredo Fernandes, coincidentemente, amigo de infância e juventude de Pedro, em Pau dos Ferros. Alfredo nasceu em 1883, quatro anos após Pedro. Pedro seria fruto de uma relação de Adolfo na adolescência com uma escrava da fazenda, pois àquela época, isso se dava naturalmente.  
             Dona Zélia Fernandes descende dos Fernandes do alto oeste, nascida em 1917, aos noventa e dois anos de idade confirmou a versão de que Pedro era filho de Adolfo e explica que naquele tempo, os donos das fazendas tinham as empregadas para servirem-se delas sexualmente, também. “Conheci bem Chico Cabral, filho mais velho de seu Pedro. Chico Cabral era bem relacionado, gente fina. Mamãe dizia: Pedro é da família, Pedro é de casa. Ele foi criado na casa de meu avô, Zé Rufino”, recorda dona Zélia. “Eu sei que tudo é do mesmo sangue. O sangue dos Fernandes corre nas veias dos Muribecas”, continuou.     
             Na certidão de nascimento de cada filho de Pedro Cabral, consta como avós paternos apenas: Benedito Cabral e Maria da Conceição. Conceição é um nome comum na região do alto oeste, visto que a padroeira de Pau dos Ferros é Nossa Senhora da Conceição. Mas no mesmo livro, Calazans trata de uma Maria da Conceição que teria um romance, também, com um padre, irmão de Childerico.
               Inalda certa vez perguntou ao pai, quem cozinhava na Fazenda João Gomes. Pedro respondeu que havia muita gente para isso. Ele contava que havia uma mulher, Mãe Marica, que o maltratava. “A casa era muito grande e quem mandava era Mãe Marica”, dizia Pedro. Sobre Mãe Marica, Inalda perguntou a Calazans em São Paulo, e ele respondeu que era uma prostituta que morava na Casa Grande, não valia nada, só servia para maltratar os escravos e os trabalhadores, não tinha pena de ninguém.      
             O que os descendentes de Pedro não sabem é o por que do seu nome de batismo: Pedro Alves Cabral. O nome Pedro se justifica. Nasceu no dia de São Pedro e é comum no sertão, dá o nome do santo do dia aos recém-nascidos. Segundo ainda o livro, o pai de Calazans Fernandes, Zé Rufino, sobrinho de Childerico Fernandes, foi um pesquisador nato, chegou a pensar que a família Fernandes descendia do descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral, já que este era Fernandes. “Do Cabral, Zé Rufino continuaria desconhecendo qualquer traço genealógico, antigo ou recente mais consistente, até porque não estava em suas cogitações aprofundar-se na vertente. Exceção feita para o caso do menino saudável e taludo...”, registra no livro O Guerreiro do Yago.    
              O pai ou, Childerico, Adolfo ou, sabe-se lá quem, talvez quisesse homenagear o descobridor do Brasil, o português Pedro Álvares Cabral, que viveu de 1456 a 1525. Possivelmente, alguém não aceitou ou não concordou com a homenagem e o menino ganhou o sobrenome Alves, em vez de Álvares.  Mas isso é suposição.  É comprovado que ele nasceu no dia de São Pedro, 29 de junho.
            Sendo assim, o ramo Cabral dessa família começou com Pedro Alves Cabral, daí não encontrar parentes em nenhuma outra família Cabral pelo país afora. Ou seja, não existe parentesco com nenhuma família Cabral, que não seja oriunda do patriarca Pedro Alves Cabral. Ou Pedro Muribeca. Esse apelido, Pedro ganhou depois que seu irmão foi embora para a Amazônia, juntamente com o amigo, Manoel Negreiros, tendo residido num local chamado Muribeca. O irmão faleceu vítima de malária, o que fez Manoel Negreiros retornar para Mossoró, onde se estabeleceu comercialmente no centro da cidade, com um grande armazém
atacadista. Com o retorno de Manoel Negreiros, os conhecidos passaram a perguntar pelo irmão de Pedro, que morrera em Muribeca, então, Pedro ganhou o apelido. Mas Muribeca é nome de cidade no estado de Sergipe e nome de rio afluente do Itapemirim.    
                Pedro Alves Cabral nunca assistiu uma aula. Isso era comum porque a nenhum dono de fazenda era interessante dar educação formal aos filhos de escravos, para que estes ficassem subservientes a estes senhores a vida inteira, seja na agricultura ou  no trabalho braçal, na construção de cercas, casas, de açudes, enfim.   
               Pedro começou a trabalhar cedo. Trabalho pesado, na agricultura, tal qual escravo. Calazans Fernandes conta que Pedro  tinha algumas regalias por ser filho do dono das terras, do seu senhor, mas trabalhava como escravo e, caso algo saísse errado, era castigado como tal. “Meu Pai trabalhava desde os quatro anos de idade e contou que havia cerca de cem vacas no curral, paridas. O responsável era um senhor chamado Velho Félix, que mandava Meu Pai cuidar da porteira. Meu Pai nessa idade recebia ordens para não deixar passar o gado, além do que o velho pedia. Se mandavam soltar quatro bezerros e passasse um a mais, por exemplo, o próprio Felix dava-lhe surras, sem dó, com o mesmo chicote que judiava os animais. Podia ser a qualquer hora, até de madrugada. Pegava Meu Pai pelas pernas e batia nos espinhaços. Por isso, Meu Pai era um homem malvado. Aprendeu com o velho Felix. Já rapaz, era dono de comboio, uma pessoa de confiança de Zé Rufino. Carregava sal e outras mercadorias, de Mossoró a Pau dos Ferros. Quando eu era menino, Meu Pai tinha dez burros, meu irmão, José, tangia cinco e Meu Pai, cinco, e eu de um lado. Viajamos muito para o Cariri, carregando rapadura. Um bocado era vendida na feira. Rapadura boa. Meu Pai era velho querido no Riacho do Meio, os amigos iam lá em casa tocar com ele. Tem umas coisas que a gente devia dizer, mas no começo da vida, a gente faz muita besteira”, relembrou Odílio, do alto dos seus noventa e quatro anos de idade.   







Relógio de Pedro






                    Amansador de burro



        “Todo homem é sujeito e
                                     senhor da sua história”                                             Valério Mesquita 
          

        Pedro Cabral cresceu no meio rural e, ainda moço, ficou  conhecido como um especialista em amansar burros. Era encarregado de amansar burros e cavalos, uma atividade que era domar. Essa atividade consistia em montar no cavalo em pelo, apanhar um bocado de crina e dar uma cutucada com os calcanhares, dando paradas e aceleradas, virando para um lado e para o outro. Logo, o cavalo costumava aceitar seu fado e, depois disso, era uma questão de habituá-lo à sela e de encontrar os melhores arreios. A partir de então, era possível treiná-lo. Com cavalos inexperientes nunca se sabia o que poderia acontecer. Durante esse treinamento, por diversas vezes, Pedro era jogado ao chão.  
Certa vez contou sobre sua criação, disse que cresceu aos cuidados de uma espécie de governanta, muito rígida e violenta da casa grande do seu senhor, Mãe Marica. Numa dessas recordações, contou que o pior castigo que sofreu foi quando ela mandou amarrar uma corda em volta de sua cintura e o prendeu a um cavalo e, este tangido, correu mato afora, arrastando Pedro, até arrancar a pele do peito.
           Vendo o sofrimento do jovem rapaz, a governanta veio em seu socorro e cuidou dos ferimentos com água e sal, causando dores terríveis.    Tinha a profissão de vaqueiro quando casou.   
           Tudo indica que Pedro só teve um patrão na vida. Foi seu Hipólito Cassiano de Souza, casado com dona Francisca Fernandes de Souza, pais de Ezequiel Fernandes de Souza – nascido em 1892 – que viria a trabalhar com Chico e Cirilo, filhos de Pedro, na Alfredo Fernandes & Cia. Um casal que Pedro elogiava bastante aos filhos, inclusive foi dona Francisquinha quem ensinou Maria e Júlia, filhas de Pedro e Antonia, a ler e escrever. Hipólito ficou viúvo e casou-se com Mariinha, com quem teve dois filhos, Terezinha e Aldiva Monte, hoje residente em Fortaleza, viúva do dentista João Monte. A partir de 1943, Aldiva passaria a ser colega de trabalho do primogênito de Pedro, Chico Cabral, na Alfredo Fernandes & Cia., em Mossoró.    
              Pedro foi uma pessoa extremamente honesta, de personalidade. Tinha perseverança para cumprir suas obrigações, especialmente criar os filhos e trabalhar, para dar-lhes de comer.
              Pedro Cabral era um homem de honra e íntegro. Para o psiquiatra e escritor Lair Ribeiro, “Honra é um sentimento íntimo de dignidade que decorre da prática de atitudes íntegras, levando uma pessoa a procurar manter-se merecedora da consideração das demais pela prática diligente de tais atitudes. Pessoas que cultivam a honra são honestas, dignas e merecedoras da confiança. Acima de tudo, elas têm integridade, que é a base de todas as demais virtudes. E integridade, por sua vez, traz em si a retidão e a imparcialidade. Profissionalmente, integridade pode ser definida como a capacidade de honrar os compromissos assumidos”. Em resumo, eis Pedro Cabral, que nunca soube sequer o significado da palavra ética. Jamais escutara ou lera sobre o assunto.   
           Talvez a melhor definição para o velho Pedro Cabral seria que ele fora ‘um homem de princípios’. E o que é um homem de princípios? Na capital paulista, na tese de mestrado do bisneto de Pedro Cabral, à época, o juiz mais jovem do Brasil, Francisco Glauber Pessoa Alves, encontra-se uma definição dada pelo jurista Miguel Reale: “A palavra princípio tem duas acepções, uma de natureza moral, e outra de ordem lógica. Quando dizemos que um indivíduo é homem de princípios, estamos empregando, evidentemente, o vocábulo na sua acepção ética, para dizer que se trata de um homem de virtudes, de boa formação e que sempre se conduz fundado em razões morais”.
            Pedro era um homem benquisto, ou seja, bem visto, querido e estimado por todos. Uma pessoa bem aceita. Nunca teve um inimigo. Um  homem de moral. Autodidata, aprendeu a tocar sanfona. Ninguém  sabe com quem aprendeu. Com um fole de oito baixos, de marca Todeschini, adquirido em Mossoró, na loja Ford, de João Holanda. Dizia que era fã incondicional de Luiz Gonzaga, o rei do baião. Tal qual seu ídolo, Pedro tocava rancheira, xote, valsa e, de vez em quando, animava algum forró perto de casa. Em algumas noitadas, depois de casado, Antônia o acompanhava, com ciúmes, nos forrós. Nunca dançou, ficava sentada e ele tocando. Pedro não dava ousadia para as mulheres. Uma vez, num baile, veio uma moça e sentou-se no seu colo. “Meu Pai perguntou se ela não estava achando demais e mandou-a se levantar. Meu pai era muito antigo”, ironiza Guiomar. Enquanto tocava, fumava um cachimbo para não cochilar. 
           Pedro chegou a tocar em grupo, com dois amigos: Chico Grilo, que tocava rebeca e Clementino, em outra sanfona. Então, o grupo se constituía de três músicos amadores, tendo como instrumento musical, duas sanfonas e uma rebeca. Não havia triângulo e nem zabumba, segundo Odílio, a quem o pai contou sobre esse tempo. Odílio conheceu ainda criança, os colegas do pai, mas já não tocavam em grupo. “Clementino era um negro tocador falado, tinha um cavalo branco, bem lavadinho. Ele tinha uns dez anos a menos que papai. Eu lavava o cavalo dele todo dia. Meu Pai viveu muito tempo da sanfona. Eles tocavam a noite todinha, até de manhã. A poeira cobria a latada. Meu Pai me contou uma história. Que foi tocar num determinado lugar e notou uma cabocla dando em cima dele. Deu vontade de dançar e perguntou se os colegas seguravam o forró e, com o consentimento deles, largou um pouco a sanfona e foi dançar com essa moça que tinha o apelido de Raposa. Então, os colegas Chico Grilo e Clementino, ficaram tirando sarro com ele, dizendo ‘Olha, a raposa’. Papai não entendeu nada, mas se chateou e largou a moça no meio do salão dizendo que não queria mais dançar com aquela raposa”, ri Odílio.
         Numa dessas noites que tocou num baile, Antonia ficou em casa, sozinha, não tinha filhos ainda. Chegou um homem, batendo a porta, dizendo que era de paz. Ela abriu a porta, deparou-se com um negro alto. Disse que estava de viagem e veio pedir um copo d’agua. “Mamãe teve um dos maiores sustos da vida, deu água e ele foi embora”, conta Adelzira.
          Certa vez, o primogênito Chico adoeceu, Pedro pegou a sanfona e saiu para a cidade para comprar um remédio, voltou com três dias e, alegou a Antônia que estava numa festa, tocando, chamaram e ele esqueceu que deixara em casa, apenas a esposa e o único filho, doente, necessitando de cuidados.  
          Nenhum filho sabe como surgiu a música na vida do pai e  com quem aprendeu, de quem ganhou ou como adquiriu a primeira sanfona. Sabe-se que Pedro fez amizade com uns tocadores de realejo e quis aprender. “Meu pai era inteligente. É porque naquele tempo não se aproveitavam a inteligência. Ele foi aprender a tocar realejo, depois sanfona, naquele tempo, conhecido como fole”, disse Odílio. Sabe-se que quando se casou, já tocava sanfona porque à época que tocava com os amigos, era solteiro.
         Em Pau dos Ferros passou a tocar profissionalmente nos bailes, nos sítios. Em Mossoró tocava sanfona somente para a família”, disse Guiomar.
         O comerciante aposentado, do ramo de vidraçaria e também sanfoneiro nas horas de lazer, Luiz Cruz, conta que ao conhecer Pedro, quando este já residia em Mossoró, chegou a dar-lhes algumas aulas, que seriam noções teóricas sobre o instrumento e passou-lhe músicas que estavam na moda na cidade.      
          Quando faleceu, Pedro deixou essa sanfona de herança para a neta mais querida, Zilene, e durante um tempo serviu para animar os bailes na Casa de Saúde São Camilo de Lélis, da qual é sócia-diretora. Após seguidas reformas, a sanfona repousa na casa de Zilene, como uma das raras relíquias deixadas por Pedro Cabral.   
           Eliseu tem boas recordações do genitor: “Papai era formidável, inteligente, bacana, mas tinha os aperreios da vida”. “Papai era um homem muito honesto. Tão honesto, que hoje estaria preso”, continua.     
           Eliseu lembra muito bem que o pai vivia na estrada tangendo burro com Alfredo Fernandes, que viria a ser a partir da década de vinte, do século vinte, empresário e grande empreendedor no Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro: “Não sei como Alfredo enriqueceu, mas morreu pobre”, disse Eliseu. Ele lembra também que o pai vivia dizendo que Alfredo Fernandes nasceu para ser um homem rico. Que tudo que tocava, transformava em dinheiro. De tempo em tempo eles saiam de mato adentro, cada um em seu cavalo. “Vi muito papai na companhia de seu Alfredo. Quando eles passavam muito tempo no mato, era papai quem fazia a comida”, recorda Eliseu. 
            De política, Pedro falava em alguns personagens que conheceu e manteve relacionamento de amizade: Ferreira Chaves e Almino Afonso - senador Almino Álvares Affonso, o grande tribuno da Abolição dos Escravos. Comentava com os filhos tudo o que esses homens fizeram como governantes. Em Mossoró, fez amizade com Dix-huit Rosado, a quem chamava de Capitão. Dizia que era do tempo em que se votava na mesa, o voto ainda não era secreto.
           Mesmo com todas as dificuldades de um homem que vivia da agricultura, numa região de muita seca, de mais miséria do que bonança, Pedro nunca deixou faltar o necessário para ele e a família. Quando faleceu deixou casas, terrenos e um dinheirinho.

            Pedro achava errado um homem trabalhar a vida inteira e deixar bens para os herdeiros. Em sua opinião, quando alguém morresse, os bens deveriam ficar para o governo. Confessava que os herdeiros deviam tirar do próprio suor o seu patrimônio: “Quem quisesse ter alguma coisa, que fosse trabalhar”, defendia. 

                                                  

                                                                             

                                       

                                        
                                         

                   

PREFÁCIO















HISTÓRIA
 DE

 UMA ÉPOCA

  

   A SAGA DE 

      PEDRO ALVES CABRAL
   


Pedro Alves Cabral e Antônia Neri Cabral com filhos, netos, genros e noras nas Bodas de Ouro, em 27 de novembro de 1951





DEDICATÓRIA


   Aos primos, Kleber Paiva Alves e João Bosco Cabral Freire, os primeiros a sugerir esta obra.
  Todos os tios e tias que serviram de fonte, especialmente Maria, Adelzira, Eliseu, Guiomar, Júlia, Odílio, Luiz Gonzaga - Negaíz - e primos, cujos depoimentos contribuíram para levantar o perfil dos biografados.
   À mamãe, Inalda, e meus irmãos que tanto curtiram relembrar o que testemunharam.
     À memória de Dorian Jorge Freire, melhor texto do jornalismo brasileiro.
   À memória de Raimundo Soares de Brito e Vingt-un Rosado, historiadores e pesquisadores, com quem aprendi a garimpar o passado.
                                                                                                     
                                                            Lúcia Rocha









P R E F Á C I O 

           Muitos anos depois, ao recordar com a leitura de As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, o relato do desaparecimento lento e inexorável da cultura celta na Bretanha do ciclo Arturiano, substituída pela opressiva aliança entre o cristianismo - tal qual o entendia a Igreja católica - e o poderio do Estado romano, associei o sentimento de perda dos personagens fadados a serem testemunhas daquela época à minha própria amargura com a extinção, também impossível de ser detida, da antiga cultura sertaneja nordestina, iniciada no ciclo do gado.
           E recordei enquanto caminhava, garoto, pelas ruas da minha infância, tangido suavemente por meu pai, a cumprimentar, tímido, os vizinhos, dentre eles um seu colega de trabalho, Francisco Alves Cabral, o Chico Cabral, a quem eu relacionava imediatamente, por ser filho de Pedro Alves Cabral, com a Casa Grande da Fazenda João Gomes, uma das três ou quatro construídas no ‘início das eras’ naquela Região, o Alto Oeste Potiguar, de onde os Fernandes, todos descendentes de Mathias Fernandes Ribeiro, filho de um português oriundo da Vila de Faral, cidade do Porto, Região do Douro, e de uma filha de outro português, Francisco Martins Roriz, fundador de Martins, se espalharam pelo Brasil.
         Pedro Alves Cabral nascera lá, naquela mítica Casa Grande que Lampião recusou atacar, por arte de Massilon, quando invadiu o Rio Grande do Norte se dirigindo a Mossoró, escutara suas histórias e estórias nos serões familiares, testemunhara algumas e era, ele mesmo, o epicentro de uma história contada aos sussurros, entre os adultos Fernandes, mas escutados por meninos de ouvidos ávidos, que atribuía seu nascimento em 1879, no dia de São Pedro, às estripulias juvenis de Adolpho Fernandes, primogênito do Capitão Childerico José Fernandes de Queirós e Sá, então proprietário do solar senhorial por seu segundo casamento com Maria Amélia Fernandes, a dona Marica do João Gomes, única herdeira de todo o patrimônio do Tenente Coronel Epiphanio José Fernandes de Queirós, conhecido como Major Epiphanio, este falecido em 1884, e seu construtor.
            A história de dona Marica é por si mesma uma lenda na família Fernandes. Consta que Antônio Fernandes da Silveira Queirós, o Major do Exu, teve vários filhos, dentre eles o Major Epiphanio e o Cônego Bernardino José de Queirós e Sá, que foi vigário de Pau dos Ferros, de 1849 a 1884. O Major Epiphanio não teve filhos; o padre, dezesseis, de várias mulheres, dentre eles dona Marica, primogênita, adotada por seu irmão e dele futura e única herdeira.
          Ao assumir João Gomes o Capitão Childerico, Adolpho Fernandes, o primogênito, ao que consta, segundo as lendas, manteve a tradição inaugurada pelo Cônego Bernardino, seu tio-avô, de engravidar o mulherio das redondezas, e dele nasceu Pedro Alves Cabral, pai de Chico Cabral, a quem eu sempre associo a Casa Grande da Fazenda João Gomes e a proteção que recebeu, ao longo da vida, dos Fernandes descendentes do seu avô, bem como lembro, imediatamente, de outras tantas e preciosas histórias/estórias que o pó do tempo insiste em sepultar, e lentamente encaminhar toda uma cultura da qual, hoje, quase não há mais testemunhas vivas, para o desaparecimento.
  
            Francisco Honório de Medeiros         











                               NOTA DA AUTORA


        Pedro Alves Cabral, ao contrário da música de Pedrinho Mendes, não era um Pedro qualquer. Oriundo da zona rural do Alto Oeste Potiguar resolveu mudar de vida e de cidade aos cinquenta e cinco anos de idade, quando colocou a família em cima de um caminhão, em dezembro de 1934, e migrou para Mossoró, onde já  moravam três dos seus catorze filhos. O primogênito, Chico Cabral e o patriarca queriam que as filhas tivessem a oportunidade de ter uma educação formal, sem jamais imaginar que seus descendentes fossem tão longe e estariam espalhados por todo país, exercendo atividades profissionais nas mais diversas áreas.
    São advogados, médicos, administradores de empresas,  assistentes sociais, contabilistas, engenheiros, arquitetos, professores, radialistas, jornalistas, comerciantes, comerciários, metalúrgicos e até um juiz federal.
         Uma neta jornalista resolveu contar essa trajetória da família muitos anos depois de descobrir sua vocação profissional, sem se dar conta que tinha dentro de casa o que poderia ser sua melhor reportagem. Mais do que isso, uma história fantástica, a dos avós maternos: Pedro Alves Cabral e Antonia Neri Cabral.                
        HISTÓRIA DE UMA ÉPOCA – A SAGA DE PEDRO ALVES CABRAL é mais do que uma biografia, talvez um estudo sociológico, pois o texto registra as diversas fases da história com os acontecimentos em Mossoró, no país e no mundo, para o leitor e descendentes da família se situarem no contexto da história.     
     Do avô, esta jornalista tem pouca recordação, pois estava na primeira infância, quando ele faleceu. Com a avó, teve um relacionamento bastante próximo, porque sempre foram vizinhas. Ainda adolescente, convalescendo de problema numa perna, passou cerca de seis meses aos cuidados da avó, no seu quarto. Conversavam o dia todo, sem um aparelho de televisão por perto. A avó na rede, a neta ao lado, numa cama.
        Dessa convivência, não soube tirar proveito. Até que indagava e questionava as histórias da família, porém, nada gravado ou anotado.
     Mas só se deu conta que não havia registrado nada,  anos depois, no início dos anos 1990, morando na capital paulista, para onde seguiu, quando concluiu a tão sonhada graduação em jornalismo. Um primo em segundo grau, paulistano, Kleber, à época com treze anos de idade, vivia questionando a origem da família. Queria saber tudo sobre os ancestrais. Fatos e detalhes que a distância o impediam de tomar conhecimento. Achou um barato a coincidência do nome do bisavô, quase homônimo do descobridor do Brasil.
      Quando achava que não tinha mais histórias da família para contar a Kleber, conversou sobre o assunto, com outro primo, Bosco, seu hóspede em São Paulo. De Bosco, ouviu não somente o estímulo para escrever a história do avô, mas também sobre o primogênito, Chico Cabral. Bosco descrevia um Chico Cabral playboy, um homem de sucesso, que viajava ao Rio de Janeiro todo ano. Que trazia as novidades da capital do país, em baús para as irmãs e a mãe, que namorava as moças mais bonitas da cidade, que casou aos quarenta anos de idade, com uma moça bonita e elegante, que tinha a metade de sua idade. Meu Deus! Bosco soube ‘vender’ a ideia que aquela família daria uma bela história em livro.        Então, desde 1994, essa história passou a ser digitada. Antes disso, tanto eu como o primo José Hélio Cabral Freire, havíamos publicado artigos em jornais de Mossoró sobre Pedro Alves Cabral. Que havia sido homenageado na década de 1970 com um nome de rua, que começa na Rua Felipe Camarão - bairro Aeroporto - e vai até a Rua Frei Miguelinho, no bairro Nova Betânia. 
       No entanto, a Prefeitura Municipal de Mossoró, afixara ao longo da rua, placas com o nome Pedro Álvares Cabral, equivocadamente. Pedro foi proprietário de terras naquele bairro, onde foi construída a primeira estação rodoviária. O que se conseguiu com a publicação da história de Pedro Alves Cabral, foi a troca das placas afixadas nas residências, onde passou a constar o nome do verdadeiro homenageado. Tempos depois, a rodoviária foi demolida e a prefeitura construiu a Secretaria de Cidadania do Município. A homenagem com o nome da rua seria a indenização da prefeitura pela posse do terreno.
      Numa simples pesquisa ao site dos Correios, verifica-se que em Mossoró não existe a Rua Pedro Alves Cabral e sim, a Rua Pedro Álvares Cabral. Porém, toda correspondência que chega aos moradores daquela rua, provenientes de órgãos públicos e comerciais, tem como destinatário, a Rua Pedro Álvares Cabral. Sem o CEP – Código de Endereçamento Postal - porque cabe à Prefeitura Municipal de Mossoró, providenciar, junto aos Correios. O que até agora não foi feito, tantos anos depois. Como a câmara concede o nome da rua, cabe a ela, dar prosseguimento ao processo de reconhecimento.
        E quem foi Pedro Alves Cabral? Nada mais, nada menos do que um simples agricultor com visão. Um homem que nunca teve uma professora, mas que acalentou o sonho de formar as filhas. Quando os homens já estavam encaminhados no mercado de trabalho, vendeu o seu pedaço de chão, na zona rural de Pau dos Ferros e migrou para Mossoró com esposa, filhos e o gado.           
       Foi assim que começou esse livro: em primeiro lugar, montar a história de alguém que veio do sertão e, chegando na cidade grande, quarenta  anos depois, foi homenageado com o  nome de uma rua.  
     Eis Pedro Alves Cabral, Pedro Cabral ou Pedro Muribeca que, como um homem comum, conseguiu vitórias espetaculares. Viveu uma rica experiência na terra.  Alguém que se importava com a qualidade de vida e de estudos para as filhas. Um homem de moral, ético, que jamais comprou fiado e nunca teve inimigos.  
     Seus descendentes, pela influência da família e por seus próprios valores participaram e participam ativamente do desenvolvimento de Mossoró e do país.
    HISTÓRIA DE UMA ÉPOCA – A SAGA DE PEDRO ALVES CABRAL será uma trilogia. Esse é o primeiro volume de uma série que contará toda a história da família Alves Cabral, membro por membro, oriunda do casal Pedro Alves Cabral e Antonia Neri Cabral.
E, parafraseando Leon Tolstoi, “Se queres ser universal, fale de tua aldeia”.  

















                                                               
Danilo Tázio Vasconcelos Freire

                                        Carta aos primos



Natal, 19 de março de 2003.


           Eu tinha no máximo seis ou sete anos, quando morávamos todos numa casa tão pequeneninha para nós seis. E como parecia grande...
            Sentávamos à mesa para jantar e meu pai quase sempre tinha uma história nostálgica para contar de quando era criança. Minha mente viajava, imaginando, como seria realmente esse lugar chamado Poré. Levei anos para um dia ir visitar pela primeira vez. Para meu pai tudo remetia àquela terra incrível.
            Ele sempre falava de sua vó Mãe Toninha*, que fazia cuscuz, milho, canjica... As festas de São João na fazenda do Padim Pedro eram eventos que nem cem anos, farão meu pai esquecer. O amor que todos os filhos de minha vó Adelzira Cabral tem por aquele lugar, não se nota nas histórias e sim, nos seus olhos.
            Também tive uma infância. Convivi muito com meus primos. Achava a melhor coisa do mundo quando todos estavam juntos na casa de vovó. Esfregava as mãos e passava a língua nos lábios quando sentia o cheiro daquela farofa que só ela sabe fazer. Era tanto barulho, um povo que falava tão alto, nosso domingo não podia ser melhor.
            E quando íamos para Tibau, ficávamos eu, Samuel, Stella, Andréa, Camila, Ludmila - Uda - Talliana, Daniel, Tereza Raquel, Cibele e Tiago no máximo em duas redes. O tempo passou como um piscar de olhos e logo surgiram o que eu chamo de a segunda remessa de primos: Delano, Leandro, Nara, Leonardo, Naiara, Igor e, por último, Bianquinha. Todos, primos que me ensinaram a viver melhor e ainda ensinam.
            Naquela época, era tudo diferente. Não nos preocupávamos em como seria o dia seguinte. Não entendíamos muitas coisas, não sabíamos nem as horas. Um ano custava tanto! Nossa vida era alimentada pela imaginação. O amanhã viria só depois. Nada nos atingia. Parecia que nossas vidas eram eternas.
            Hoje a vida ainda é muito boa. Mas não somos mais crianças que não sabem que horas são. Sabemos que não vivemos para sempre e nem todos nossos avós ou pais estão conosco. Parece que temos que viver com mais pressa.
            Não tenho Cabral no meu nome, mas sou filho de José Hélio Cabral Freire, neto de Adelzira Cabral Freire e acho que sei pouco sobre a família Cabral. Sei que muitos de meus primos não me conhecem e a recíproca é verdadeira. Muitas histórias, como as de meu pai, poderão ficar perdidas para sempre. Talvez um dia eu não possa contar para as crianças que ainda não nasceram, as histórias de meu bisavô porque ninguém mais conhece.
           Portanto, digam o que fazem, escrevam para que possamos nos conhecer. Sei que nossas vidas não são eternas, mas façam parecer que são!

  
Danilo Tázio, jornalista e bisneto de Pedro

  
*Danilo refere-se a Mãe Toinha.











              Três Crivos de Sócrates*


        "Somos responsáveis não apenas por nossos atos, mas também por nossas palavras. Parece evidente, mas o fato é que nem sempre damos a devida atenção ao que parece evidente. Envolver-se em fofocas, repassar informações sem conferi-las e dar corda a boatos é uma tentação a qual todos estamos expostos. Só que não há nada de inocente nisso. É assim que comprometemos a reputação dos outros e também a nossa. Uma boa forma de evitar essa armadilha é refletir sobre as palavras de Sócrates. O grande filósofo grego tinha um método imbatível para não se deixar envolver pelo perigo das redes de intrigas. Um dia, quando Sócrates conversava com seus discípulos em Atenas, um homem aproximou-se e, puxando-o pelo braço, lhe disse:  
      - Precisamos conversar em particular. Tenho uma coisa urgente para lhe contar.
      Sócrates respondeu:
      - Espere um pouco. Você já passou isso que vai me dizer pelos três crivos?
      - Como assim? Que crivos?
      Espantou-se o homem.
      - O primeiro é o crivo da verdade. Você tem certeza de que o que vai me contar é verdade?
      - Certeza, não tenho! Mas muita gente está falando, então... 
      - Bem, se não passou pelo crivo da verdade, deve ter passado pelo da bondade. O que você está prestes a me dizer é algo bom, não?
      O homem hesitou.
      - Bom não é. Muito pelo contrário.
      - Se talvez não seja verdade, e com certeza não é bom, resta o terceiro crivo. Há alguma utilidade no que você quer me contar?
      O homem pensou um pouco.
      - Não sei bem, acho que não...
      - Neste caso, se sua história não é verdadeira, nem boa, nem útil, não perca seu tempo contando-a, pois nenhum proveito pode-se tirar dela.
      Disse o filósofo, encerrando a conversa". 
                                        
        *Este texto apócrifo foi enviado pelo primo José Rômulo, por e-mail, em janeiro de 2009, com a seguinte recomendação: “Lúcia, muitas pessoas deviam seguir esses crivos como uma religião”.
        Pois bem, este livro passou pelos três crivos. 










                                                                                                                               

SÍTIO RIACHO DO MEIO


                                                                       
Casa de Pedro e Antônia até o final de 1934, em foto de Élder Viana 


          O Sítio Riacho do Meio era um pedaço de terra na zona rural de Pau dos Ferros, hoje é bairro.
     Em 1901, quando Pedro e Antônia se casaram, foram morar nesta casa que ilustra essa postagem, aonde nasceram todos os filhos do casal.   

      
                                   
Lateral da casa, em foto recente de Élder Viana

                                                                             
O primeiro neto, Edmundo, fez uma viagem saudosista no Riacho do Meio e levou a esposa, Iracy, e a mãe, Júlia. "Uma vez, levei mamãe no Riacho do Meio e ela sentiu muita emoção. Agora estive em dezembro com Iracy e vi que evoluiu bastante, está praticamente uma cidade. Lembro que quando fui com mamãe havia a casinha, bem direitinha, faz um bocado de tempo, uns quinze anos. Mamãe reconheceu a casa. Entramos, tudo muito simples, acho que já não era mais de taipa, estava bem arrumadinha. Havia algumas divisões, uma calçadinha. Foi reformada posteriormente. Eu não conhecia bem, porque era o seguinte: Tio José tinha um terreno antes do Riacho do Meio e eu todo santo dia ia deixar uma vacas lá. Tio José dava o leite de duas vacas para a gente, mas em compensação eu tinha que ir buscar e deixar essas vacas. Eu tinha uns dez anos de idade. Estive em dezembro e lembrei bem daquele corredor longo. Quando eu era criança, lembro que diziam que havia ali uma alma, uma visagem, que aparecia, por causa do vazio grande que tinha e, um belo dia, Tio José, no terreno dele, já à noite, quando chegou embaixo de um juazeiro, a alma se mexeu, fez um rebuliço em cima do juazeiro, Tio José pegou a espingarda e atirou, a alma caiu embaixo dos pés dele. Era um guaxinim que morava em cima do pé de juazeiro. Então, acabou-se a alma".